Nota de repúdio da Sociedade Brasileira de Lógica às declarações do Presidente da República e do Ministro da Educação

29/04/2019 09:36

Nota de repúdio da Sociedade Brasileira de Lógica às declarações de Sua Excelência, Presidente da República Federativa do Brasil, Jair Bolsonaro, e Sua Excelência, Ministro de Estado da Educação, Abraham Weintraub

 

Em apoio à ANPOF – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia.

 

Em apoio à SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, ao movimento #CiênciaOcupaBrasília e à mobilização nacional de 8 e 9 de maio de 2019 contra os cortes orçamentários em Ciência, Tecnologia e Informação.

A Sociedade Brasileira de Lógica (SBL) repudia veementemente as recentes declarações, por parte de Sua Excelência, o Presidente Jair Bolsonaro, e de S. Exa., o Ministro da Educação Abraham Weintraub, a respeito do ensino e da pesquisa nas humanidades, particularmente a filosofia e a sociologia.

As declarações são desastrosas e ofensivas não só aos profissionais dessas áreas, como também deslegitimam toda a área das humanidades em todos os níveis da educação brasileira, sem excetuar o ensino mais básico da alfabetização mais chã, explicitamente mencionada por Sua Excelência o Presidente – como se fosse possível aprender a ler e a contar sem reflexão e autoconsciência. Chegando mesmo a dizer que apenas ricos deveriam se dedicar aos estudos filosóficos, S. Exa. O Ministro junta-se à Sua Excelência o Presidente na repetição de preconceitos rasos, caracterizados por um utilitarismo de vista curta e um atroz elitismo. Dos muitos problemas passíveis de ser levantados, ressaltamos dois erros nessas declarações.

            O primeiro erro é supor que só tem valor o que é imediatamente útil. Como filosofia e sociologia não trazem “retorno de fato”, devem ser consideradas inúteis e, portanto, sem qualquer valor. Ora, a verdade é que esse discurso trai uma preocupação exagerada com o que é desqualificado – se filosofia e sociologia nada produzem de fato, por que então atacá-las? Se são inúteis e desprovidas de todo valor, por que interessariam justamente aos ricos? O ataque parece revelar justamente o oposto do que está dito: filosofia e sociologia realmente são valiosíssimas, a ponto de merecerem menção direta, e, por isso mesmo, devem ser eliminadas do currículo, ou reduzidas ao mínimo disponível apenas às classes mais favorecidas. Cabe perguntar, portanto, se as palavras de Sua Excelência o Presidente e de S. Exa. O Ministro revelam o que seus enunciadores pensam ou se há algo que pensam e não manifestam abertamente.

            O segundo erro, apoiado numa rígida e insustentável separação entre teoria e prática, é tão grave quanto o primeiro. Se o valor de uma área de estudos é reduzido exclusivamente às suas aplicações e resultados imediatos, então a própria lógica do processo de conhecer é invertida: raciocinamos para chegar às conclusões, para depois buscar descobrir o que fazer com elas, e não o contrário. Se as aplicações práticas e os resultados imediatos tornam-se critérios normativos para avaliar o conhecimento, então podemos deixar de raciocinar, basta aplicar fórmulas já conhecidas. Por que pensar, se basta só repetir? “Trabalhe, não pense”, diz um lema de assujeitamento já conhecido.

            É claro, seria ingenuidade supor que apenas a filosofia e a sociologia são capazes de produzir pensamento “consciente” ou “crítico”, da mesma forma como seria ingênuo tentar defender sua “utilidade”. O conhecimento, em qualquer área, é sobretudo inútil, contudo tão somente no sentido de que seu produto maior não é nada de imediato e material, mas sim a autonomia de pensamento e a criticidade de consciência, atingidos apenas no contato com o mundo real e na apropriação do saber produzido por outras pessoas, em todas as áreas.

            A esse respeito, é impossível esquecer que o lema da nossa bandeira é uma adaptação de outro, de Auguste Comte: “O amor como princípio, a ordem como base e o progresso como meta”. Isso porque a Escola Militar do Rio de Janeiro, já durante o século XIX, foi o principal centro de ensino sistemático da doutrina de Comte, o positivismo. Com isso, toda uma geração de militares brasileiros tornou-se positivista, a mesma geração que, em 1889, protagonizaria a Proclamação da República. De fato, Comte tornou-se filósofo após formar-se em engenharia e ser professor de matemática. Seu positivismo continha uma classificação das ciências que exerceu forte influência sobre a sociologia. Então, apesar de descartarmos do lema da bandeira justamente o amor, parece que a filosofia e a sociologia, no final das contas, são bem mais importantes para o país do que as últimas declarações de Sua Excelência o Presidente e de S. Exa. o Ministro admitem.

            Muito embora possa não saber, quem pensa sempre filosofa, e quem reflete sobre as condições práticas de sua profissão no contexto da comunidade em que vive sempre pensa sociologicamente. A filosofia e a sociologia agregam, sim, método e autoconsciência ao impulso da curiosidade própria do querer saber que é a vida do conhecimento. Seus questionamentos são tão frutíferos quanto inevitáveis, e esse parece ser seu maior perigo. Com efeito, desde Sócrates até hoje, perguntar por que devemos preferir as respostas às perguntas acaba por desestabilizar crenças assentadas e acríticas.

            Esse é o questionamento que os poderosos – em todas as épocas, em todos os lugares – costumam não tolerar e que é nossa responsabilidade, como cidadãos e como membros da comunidade acadêmica-científica brasileira, manter vivo.

Diretoria 2017-2019, 26 de Abril de 2019.